quarta-feira, junho 21, 2006

Ainda somos bárbaros

No capítulo XVII de “O príncipe”, no qual Nicolau Maquiavel (Itália, 1469-1527) analisa se é melhor, para o governante, ser amado que temido ou o inverso, encontra-se uma minuciosa descrição da condição humana: “...geralmente se pode afirmar o seguinte acerca dos homens: que são ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos, são ávidos de ganhar... têm menos receio de ofender a quem se faz amar do que a outro que se faça temer... esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio”. A conclusão do famoso capítulo é que, diante de homens nestas condições, é melhor para o príncipe ser temido que amado.

Se Maquiavel, por um lado, dava lições de tirania aos príncipes, por outro ensinava liberdade aos povos. Enquanto enxergarmos o mundo através de sombras, acorrentados à nossa condição bárbara, veremos nossas democracias se degenerarem em populismos, e depois sucumbirem em tiranias. Aquele que exercita a virtude é mais livre, porque combate a retórica fascista e não permite que um tirano tente justificar sua presença.

4 comentários:

Anônimo disse...

Aquele que não exercita a virtude justifica a presença de um tirano?

Abraço;
Márcio Guilherme.

Gabriel Filártiga disse...

Márcio,
Do ponto de vista do tirano maquiavélico, sim. Do meu, não. Eu quis dizer: "...porque não deixa um tirano justificar sua presença, ainda que indevidamente."

Abraço,
Gabriel.

Anônimo disse...

Não concordo. A virtú, segundo Maquiavel, é um atributo que o príncipe deve desenvolver para seduzir a Fortuna, "deusa mulher", com o objetivo de atraí-la e usá-la a seu favor. Não é uma qualidade a ser desenvolvida pelo súdito, pelo governado. Ele explora bastante esse ponto no cap. 25 d'O Princípe, quase no final do livro (peguei na estante pra conferir, e é isso mesmo). A virtú maquiavélica, portanto, está mais para chave explicativa do sucesso do príncipe (o qual tem a manutenção da conquista como medida política precisa) do que qualquer outra coisa.

A meu ver, a única "virtude" que se adequaria no seu argumento é a "virtude cristã" (se é que podemos chamá-la assim, já que a mesma nada tem a ver com a virtú que explicaria o sucesso do Príncipe - aliás, por vezes, muito ao contrário). Mas é aí, no entanto, que mora o perigo - se trocamos os sinais do argumento desenvolvido por Maquiavel e começamos a falar de cristianismo, corremos o risco de mergulharmos num mar de contradições insolúveis. São epistemes que, em minha opinião, não se comunicam.

Em todo o caso, e já que entramos no assunto, vale à pena citar a parte final desse mesmo cap. 25, o qual, além de reforçar meu argumento, é um dos meus trechos maquiavélicos preferidos:

"Estou convencido que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é realmente reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos circunspectos, mais ferozes, e com maior audácia a dominam".

Resumindo: com o poder, a coisa tem que ser "no pêlo".

Abração;
Márcio Guilherme.

Gabriel Filártiga disse...

Grande Márcio!

Certamente não estou falando da "virtú" de Maquiavel, mas da virtude moral. Minha edição d'O príncipe nem sequer traduz o termo, justamente para não confundir.

Sem apelar para Platão, Aristóteles ou São Tomás de Aquino, considero como exercício da virtude a capacidade de vivermos nossos valores, baseando nossas escolhas em princípios morais. No caso em tela, para que os tiranos maquiavélicos não possam se justificar, as virtudes as serem exercitadas são aquelas que vão contra a condição humana descrita por Maquiavel.

Volte sempre. Abraço,

Gabriel.