quinta-feira, agosto 30, 2007

Um Pouco de Teoria Política em Hume

A teoria política de Hume é fundamentada em sua filosofia moral. A moralidade é um conjunto de virtudes aprovado pelo senso comum, pela sua utilidade conforme percebida pelos indivíduos, pelo prazer ou aversão que proporcionam. Justiça e benevolência não fazem parte de verdades eternas, devem seus méritos ao fato de conduzirem ao bem-estar da sociedade, ao agrado e à conveniência dos indivíduos e de seus semelhantes: são virtudes de utilidade pública. Este conceito de utilidade é o embrião da economia neoclássica.

Os princípios originais do governo, segundo Hume, residem no interesse público, no direito ao poder e no direito à propriedade, e sua única finalidade é a distribuição de justiça. A justiça, entendida como o respeito pelo direito de propriedade, é a extensão artificial da benevolência, uma virtude natural que carrega a intuição humana de que estamos ligados, de alguma forma, a alguns de nossos semelhantes. A inconstância da benevolência humana, que oscila entre extremos de indiferença e heroísmo, dá sentido lógico a uma justiça institucional, fundada na racionalidade da lei. Todos os homens são sensíveis à necessidade de justiça para que sejam mantidas a paz e a ordem, e à necessidade de paz e ordem para a manutenção da sociedade.

sexta-feira, agosto 24, 2007

A Teoria do Conhecimento em David Hume

David Hume busca construir uma ciência da natureza humana baseada no método experimental, levando o empirismo às últimas conseqüências. Segundo seu sensualismo, as idéias se fundam na impressão, produzindo a crença na realidade daquilo que é representado. A história existe objetivamente, mas é produto da cristalização de crenças, de representações humanas. Assim como Locke, Hume explica a noção de substância como resultado de um processo associativo, mas acrescenta a idéia de que “eu” (self) também é uma coleção de impressões, sem resultado substancial, constituindo uma concepção da natureza humana que se afasta do jusnaturalismo. A teoria do conhecimento de Hume parte de um ceticismo que declara o fim da metafísica, ou da possibilidade do conhecimento da verdade metafísica, e das idéias claras e distintas do cogito cartesiano.

Hume adverte, entretanto, que o ceticismo extremado não tem influência constante sobre o espírito ou benéfica à sociedade. Ele explica que, felizmente, a ação humana não é interrompida pelo triunfo universal deste princípio, porque o primeiro e mais banal evento da vida coloca o cético no mesmo nível dos filósofos de todas as outras seitas e dos homens que nunca se preocuparam com filosofia*. O ceticismo de Hume, ao estabelecer como princípios crenças sem juízo de valor, parece conseguir evitar o dogmatismo.

A partir de seu empirismo psicológico, imerso na subjetividade, Hume desenvolve sua doutrina de que a causalidade não passa de um habitual processo associativo, uma impressão de que existe uma relação causal entre dois fenômenos somente porque um ocorre após o outro. Dessa forma, ele adota a crença como base de todo conhecimento natural, restringindo à matemática os processos de estruturação lógica. Adotando a crença na existência do mundo exterior, das outras mentes e do curso independente e regular da natureza**, David Hume descarta as bases racionais do entendimento humano, ancorando-o na força do hábito. Ao contrário das crenças de Locke e Montesquieu, para Hume a vida humana é mais regida pelo acaso que pela razão: a razão é e deve ser escrava das paixões.

* HUME, David. (1999), Investigação Acerca do Entendimento Humano. Seção XII: Da Filosofia Acadêmica ou Cética.
** LESSA, R. (2004), “A Condição Hum(e)ana e seus Ensaios”, in David Hume, Ensaios Morais, Políticos e Literários. Rio de Janeiro: Topbooks, pp. 11-46.

terça-feira, agosto 21, 2007

Epistemologia e Teoria Política em John Locke

John Locke investiga no Ensaio sobre o Entendimento Humano o modo como o homem adquire conhecimento das coisas, no intuito de estudar seu comportamento. A teoria do conhecimento de Locke é marcada por uma peculiar relação entre racionalismo e empirismo. Sua concepção de lei natural parte da convicção de que o universo pode ser compreendido racionalmente, mas também sugere que tal empresa somente é possível a partir da experiência. Adotando o argumento do maker’s knowledge, em que só podemos conhecer aquilo que criamos, para Locke não há uma ciência natural, pois se podemos conhecer a matemática e a moral por meio de suas causas, é estritamente pelos efeitos que conhecemos a natureza.

Com sua famosa assertiva de que a alma é uma tabula rasa, Locke se afasta da tradição cartesiana de que as idéias são inatas, considerando-as como tudo o que se pensa ou se percebe a partir da vivência. As percepções são sensações, que podem gerar reflexões. As idéias simples surgem diretamente dos sentidos e da reflexão, enquanto as idéias complexas resultam da atividade da mente, por associação das idéias simples, e se fundam na memória. Dessa forma, todas as idéias, inclusive a de substância e a própria idéia de Deus, procedem da experiência, mediante sucessivas abstrações e associações. O empirismo de Locke limita a possibilidade de conhecer, iniciando uma desconfiança em relação à faculdade cognoscitiva que culmina no ceticismo de David Hume*.

Pode-se buscar complementaridade entre o Ensaio e os Dois Tratados sobre o Governo, entre a filosofia e a política na obra de Locke. No entanto, ele próprio se empenhou para que fossem consideradas em separado, aplicando à sua teoria política um hábil e bem-sucedido método empírico, baseado no senso comum**. Locke busca um fundamento para o poder legítimo para refutar o argumento teológico de Sir Robert Filmer, rejeitando seu patriarcalismo e sua defesa do absolutismo monárquico. Partindo do estado de natureza de Hobbes, Locke assume a racionalidade como o diferencial que elimina o estado de guerra, a possibilidade da morte violenta, permitindo a coordenação dos direitos políticos e a garantia da liberdade.

Já escrevi, com outra finalidade, a respeito da teoria política em John Locke.

* MARÍAS, Julián. (2004). História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
** LASLETT, Peter. (2001). “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, pp. 1-179.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Amenidades: Ensaio sobre outro castelo

Castelo é o nome da peça central de uma torneira. Outro dia, um amigo meu (sei, sei...) precisou trocar um castelo e chamou o Edwilson, vulgo Mike Tyson, que trabalha em uma loja de material de construção.

Eu já contei a história do quiosque na praia, quando o Paulinho Pé-de-cabra ensinou como as variações cambiais afetam toda a cadeia produtiva da água de côco. Na mesma ocasião comentei o caso do catador de latas que conhecia o mercado de commodities. Também já ouvi um papo de que a idéia de aumentar a boca da long neck de cerveja foi de um ambulante. Conhecimentos populares de economia, finanças e marketing que fariam os estagiários do Centro do Rio afrouxarem suas gravatinhas, enquanto gotas de suor escorressem de suas axilas devidamente aparadas na vã esperança de, oportunamente, colocarem-se a ver despidos.

O Mike Tyson, depois do conserto, sugeriu que a torneira não fosse torcida até o final, porque isso danificaria a carrapeta, o castelo, sei lá. Meu arrogante amigo respondeu como segue.

- Pô, mas isso não depende de mim, eu não moro sozinho!

Para o que o Mike ponderou:

- É muito raro, na vida, um problema que não dependa dos outros para que seja resolvido.

No próximo post, a mesma chatice de sempre.

terça-feira, agosto 14, 2007

Locke, Hume & Montesquieu

Le Serment des Horaces: Jacques-Louis David. Museu do Louvre, Paris.

Mesmo se optarmos por suspender o juízo acerca do que é a verdade, podemos investigar a nós mesmos e a nossas contingências a partir da indagação epistemológica sobre o que é verdadeiro, buscando diretamente na experiência humana nossos conceitos e idéias. É na história que observamos, de tempos em tempos, as conseqüências de idéias provenientes do indissolúvel conflito das filosofias. É justamente na experiência humana que a filosofia se faz política, incessantemente construindo mundos imaginários que influenciam a organização da sociedade, por meio da qual, segundo Aristóteles, o homem se realiza.

A opção pelo caminho da experiência humana encontra, invariavelmente, John Locke, David Hume e Montesquieu. A importância do estudo de suas teorias está, sobretudo, na influência das idéias destes homens sobre a vida, na força com a qual seus mundos imaginários dirigiram o rumo da história, desde as revoluções liberais. O empirismo inglês se opõe à escolástica medieval, afastando-se, até certo ponto, das questões rigorosamente metafísicas, e se diferencia da filosofia do racionalismo, desenvolvendo um método indutivo e sensualista. O racionalismo jusnaturalista, presente em Locke, sofre o baque do ceticismo de Hume, mas volta em Montesquieu para compor, ao lado do empirismo, as bases do iluminismo francês. Em perspectiva política, nasce desta composição a ideologia partidária da liberdade, do governo representativo e da tolerância, que constitui o Norte da vida do homem ocidental desde então.

Entretanto, como se sustenta essa ideologia? Por que cremos nela? Vamos tentar estudar as bases filosóficas de Locke, Hume e Montesquieu, e suas teorias políticas, para lançar um pouco de luz sobre estas perguntas.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Maquiavel esbofeteia a Fortuna

Maquiavel depositou na história da filosofia política uma boa dose de sua própria virtú, estudando a natureza do homem em ação, inserido na diversidade dos acidentes, inscrito em sua contingência. Por meio do seu método de observação da história, preocupado com a projeção de cenários para a inevitável decisão do príncipe, ele atribuiu à política uma acepção de poder e dominação, diferente daquela contida na filosofia grega. A despeito dos planos da Fortuna, a abordagem de Maquiavel delineou a trajetória do pensamento político, que sairia do renascimento italiano, passaria pelo empirismo inglês e chegaria ao iluminismo na França.

Por gentileza, me acompanhe até os fundamentos das instituições políticas do mundo ocidental. Cuidado com o estribo para subir na carruagem.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Ensaio político sobre castelos de areia

Um aspecto interessante das ciências humanas é que, apesar de parecer contra-intuitivo para alguns, as investigações neste campo possuem extremo rigor metodológico. O rigor é tanto que Montaigne precisou criar um estilo, o ensaio, para que pudesse respirar um pouco dos ares literários. Francis Bacon declarou, ouvi dizer, que o verdadeiro inventor do seu método foi Maquiavel. Este, por sua vez, refundou o pensamento político resolvendo um problema incrivelmente prático: centenas de assassinos sangüinários poderiam invadir seu castelo a qualquer momento. Thomas Hobbes, impressionado com a evolução das ciências naturais, se esforçou tremendamente para utilizar um pouco de método, como ele mesmo diz no Leviatã, para chegar ao mais desconcertante lugar-comum: o mandamento cristão de amar ao próximo como a si mesmo.

Nascidos em uma realidade na qual certas idéias estão sedimentadas, muitas coisas que nos parecem óbvias não eram assim há alguns anos atrás, e podem deixar de sê-lo daqui a algumas décadas. Acho relevante procurarmos sempre quais são as crenças que mantém nossas instituições políticas em pé, inclusive por meio da razão. Nossos castelos estão sendo bombardeados, e as catapultas estão acertando na base.