quinta-feira, julho 27, 2006

A cidade visível

Para Marila. Segunda parte.

O economista peruano Hernando de Soto estimou que a formalização de títulos de propriedade para os habitantes de favelas e ocupações irregulares transformaria o que ele chama de ''capital morto'' em uma injeção de nada menos que US$ 9,3 trilhões na economia mundial. Fundador do Instituto Liberdade e Democracia, o economista já foi cotado para o prêmio Nobel, e defende a tese de que o reconhecimento da propriedade é o caminho para que os países menos desenvolvidos tenham acesso aos benefícios do “clube privado” do capitalismo ocidental.

A propriedade é anterior à lei e à própria formação da sociedade política. Ao ser formalizada através de um título, torna-se um convite ao cidadão, dando acesso ao crédito para empreender seus negócios e reencontrar a dignidade do trabalho formal. Em troca, exige respeito. Uma troca justa.

terça-feira, julho 25, 2006

A cidade invisível

Entre as cidades invisíveis de Ítalo Calvino (Cuba, 1923-1985), relatadas por Marco Pólo a Kublai Khan, uma poderia se chamar “Informalidade”. Ela seria densa, agitada e dramaticamente natural. Estaria incrustada em outra cidade, chamada “Ítaca”, entremeada pelas suas vilas e mercados. Como rios de lava quente correndo entre ilhas de ilusão. Um viajante, à distância, poderia ver as duas, e sempre seria tomado de enorme compaixão pelos seus pobres moradores. Mas, uma vez residente ali, perderia sua capacidade de separá-las, e veria beleza, alegria e um notável espírito criativo naquilo tudo.

domingo, julho 23, 2006

Vida longa às nossas famílias!

A preservação da paz e da justiça, que é o fim em vista do qual todos os Estados são instituídos*, é possível através da união que acordamos acerca de uma lei estabelecida comum e uma judicatura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias que ameacem nossa propriedade, isto é, nossa vida, liberdade e bens**.

O desvio de finalidade que observamos hoje é evidente. Candidaturas em todas as esferas de Governo propõe tudo, exceto paz e justiça. A primeira está apenas negligenciada, porque é produto da segurança pública. A segunda é considerada um “problema estrutural”. O “problema estrutural” é a maior falácia depois da “questão social”. São típicos termos cunhados com o propósito de compor discursos pré-fabricados, recursos de retórica, que, por conterem abstrações indefinidas, com cinco minutos de debate querem dizer nada. Seria melhor se a reflexão fosse sobre desemprego, por exemplo, ao invés de “questão social”. E impunidade, ao invés de “problema estrutural”.

São de senso comum certas preocupações com emprego, educação, saúde, entre outros setores que, de uma forma ou de outra, podem ser equacionados pelo setor privado. Ora, quem gera emprego são as empresas, não o Governo. Os problemas que originaram o Estado, de que eleições e candidatos não passam de efeitos colaterais, ou melhor, reações adversas, não são estes, mas aqueles que tocam nossa paz, justiça e propriedade (lato sensu).

Da próxima vez que aparecer um candidato falando sobre “geração de emprego” vou declarar independência e instituir uma monarquia absolutista. Exportarei serviços e importarei frutas frescas, não haverá súditos e nem impostos. Então, sentarei na varanda com minha rainha e minha princesa, ao redor de uma finíssima mesa de chá, desejarei "vida longa às nossas famílias" e discutiremos o Impressionismo francês enquanto limpo meu rifle.

* Trecho com base em Thomas Hobbes (Inglaterra, 1588-1679), capítulo XVIII do Leviatã.
** Trecho com base em John Locke (Inglaterra, 1632-1704), capítulo VII do Segundo Tratado sobre o Governo Civil.

sábado, julho 15, 2006

A única coisa a fazer é tocar um tango argentino

Algumas coisas feitas para serem tristes, me deixam alegre. Não digo cinicamente alegre, mas sinceramente alegre, contente. O Tango é uma delas. Coisas feitas para serem alegres também podem me deixar triste. Exemplo: Bossa Nova. Nada mais melancólico do que "um barquinho a deslizar, no macio azul do mar".

O Tango é capaz de reverter tragédias, inclusive:

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.
...................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira

Se você quiser, tem mais Manuel Bandeira e mais Tangos por aí.

sexta-feira, julho 14, 2006

Surrealismo no Centro do Rio

Palácio Tiradentes, Rio de Janeiro. Meu caminho para o trabalho é relaxante, não posso negar. O Centro do Rio ainda deslumbra os olhares mais atentos. A narrativa que segue é verdadeira, aconteceu comigo.

Outro dia parti da praça XV, passei entre o Paço Imperial (palco do Dia do Fico e da assinatura da Lei Áurea, hoje é um centro cultural) e o Palácio Tiradentes ("memória do parlamento brasileiro", hoje, bem, deixa pra lá), pela Rua da Assembléia, para chegar à Rua São José. Saí um pouco do trajeto, mas foi uma volta bonita. Era cedo e as pessoas ainda não tinham emporcalhado as ruas. Minha primeira surpresa foi encontrar, mais ou menos em frente ao McDonald's, do outro lado da ruela, na praça, um sujeito alto, gordo, provavelmente com menos de trinta anos, vestindo uma camiseta curta, bermuda e chinelos, produzindo tanto óleo através dos poros da face, que seria possível pensar seriamente em um processo produtivo para biodiesel em escala nacional. Não, nada disso me surpreendeu. O interessante é que ele estava, com um reluzente violino, tocando trechos de Dvořák e Albinoni, que impregnaram minha alma com uma esperança de que todo mal um dia seria convertido em bem. É, pela manhã sempre estou suscetível a uma introspecção profunda. Às vezes chego a cair no sono novamente.

Deixei 1,00 R$/min no case do nosso gênio romântico-barroco, e segui adiante. Atravessei a Avenida Rio Branco em um golpe de sorte do sinal, sem pistas do que ainda estava por vir. O fato é que, em pleno Largo da Carioca, sete pessoas observavam com ar de nostalgia dois argentinos tocando "Adiós Nonino", violão e bandoneón. A essa altura eu já me sentia como se tivesse uma dose de prozac circulando em minhas veias. Na verdade, os caras tinham cara de argentinos, não posso garantir. Como havia me precipitado deixando todo o trocado para o gordo, e convicto de que pegar o troco para R$ 50,00 em centenas de moedas seria uma maluquice, inventei uma louca teoria de compensação intertemporal de boas intenções, e continuei feliz ao som de Piazzolla.

No entanto, segundos depois, reparei que uma senhora tentava descobrir que livro eu carregava na mão esquerda. Escondi, para que ela não me julgasse mal. De repente, a velhinha começou a gritar descontroladamente, com a dicção prejudicada pelo movimento que o ar vindo de seus pulmões fazia ao redor de seu único dente:
- Xeu merda! Xeu merda!
Pensei que tudo estivesse acabado. Pensei em reivindicar meu dia perfeito, em dialogar com a senhora, explicar que o livro era contrário às minhas idéias, mas que era preciso conhecê-lo para combater seus princípios equivocados...
- Me dexculpe meu filho, eu não xou de falar palavrão, maix pótaqueopariu, exe garotinho é um merda mexmo!
A senhora tinha confundido o candidato Sérgio Cabral, que passava atrás de mim com seus caudatários, com o outro. A política estragou o meu dia, mais uma vez.

quarta-feira, julho 12, 2006

Mateus. Cap. 19, vers. 13 ao 15.

Ao fundo, "Briga de galo", de Jean-León Gérôme (França, 1824-1904). Museu D'Orsay, Paris. Em primeiro plano, crianças brincando com arte conseguiram me deixar otimista. Imaginei:
- Qual é o nome do galo preto, tia? Perguntou a garotinha de blusa azul.
Enquanto a professora pensava na Académie des Beaux-Arts e em todas as metáforas que poderia usar para responder...
- Frederico. Disse o jovem de camisa bege.
- E não é um galo, é um straznovix marciano. Continuou, gesticulando freneticamente.
Todos riram e pensaram que a arte era um negócio muito bacana. Depois cresceram e pagaram impostos para sempre.

sábado, julho 08, 2006

Tropa de elite

Em caso de vida ou morte, queremos a nata da medicina. Para música, Beethoven e seus melhores intérpretes. Se estamos em litígio, que seja um juiz íntegro e experiente. Para a educação de nossos filhos, as melhores escolas. É natural a busca pelo melhor quando precisamos lidar com as questões importantes de nossas vidas, através da valorização do mérito dos indivíduos, em suas artes, profissões e especialidades. O espírito anti-elite, que gostam de chamar de popular, é um equívoco da retórica vazia do frenesi revolucionário que molha as calças de nove entre dez intelectuais latino-americanos, ainda nos dias de hoje.

O que falsamente se chama de “elite política” no Brasil e na América Latina é apenas uma degeneração oligárquica. Dizem que a elite política que precisamos, formada pelos melhores homens e mulheres de vocação pública, não tem estômago para a sujeira do jogo político. Assim seja. Política não é candidatura, mandato, eleição. Presidentes, senadores e demais magistrados são meros servidores, a serviço do público, a nosso serviço. A história é conseqüência das idéias, da cultura, do debate que se dá na sociedade civil.

Tropa, vamos ao debate!

terça-feira, julho 04, 2006

Ao princípio


“Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum, capaz de manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição chamada guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens.”
...
“Em tal situação não há lugar para indústria, pois o seu fruto é incerto, e conseqüentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da terra; nem cômputo do tempo; nem artes; nem letras; nem sociedade; e o que é pior do que tudo, há um constante temor e perigo de morte violenta. A vida do homem é solitária, miserável, sórdida, selvagem e curta.”

Muito pouco muda se comparamos estas conhecidas passagens de Thomas Hobbes (Inglaterra, 1588-1679), do capítulo XIII do Leviatã, com o cotidiano de pessoas que vivem em lugares onde não há respeito pela liberdade alheia, como é o meu caso. Vivemos a era dos direitos: humanos, das mulheres, da criança, do adolescente, dos idosos, dos animais, dos presidiários, dos criminosos. Ora, nossos direitos são inatos, não precisam de declarações. Tudo não passa de uma insistente projeção de responsabilidades que não deixa espaço para os deveres. Quando abrimos mão de parte da nossa liberdade para convivermos, assumimos responsabilidades, deveres, contratos. O “poder comum” espalha-se em todas as direções, mas é incapaz de mediar estes contratos, gerando incerteza, violência e temor. Já não creio no Estado, minha opção é exercitar a lei do Evangelho “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Para meu coração de pedra, e para a dureza da vida em sociedade, cabe a versão de Hobbes: “Faz aos outros o que queres que façam a ti.”