terça-feira, outubro 31, 2006

Uma "estranha doutrina"

No Capítulo II do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, John Locke (Inglaterra, 1632-1704) enuncia uma “estranha doutrina”, defendendo que todos têm o poder executivo da lei da natureza, ou seja, da lei da auto-preservação e da preservação de seus semelhantes, que não é abandonada por acordo, pacto ou contrato algum. Este enunciado antecipa o conceito de propriedade, pedra angular de seu pensamento.

Muito além do senso comum, a propriedade carrega os valores da vida, da liberdade e dos bens de cada indivíduo. A preservação destes valores é a razão pela qual os homens entram em sociedade e a finalidade do Estado constituído. Cada indivíduo delega racionalmente seu poder executivo a um poder comum, seu fiel depositário. Locke enfatiza a idéia de que o poder é delegado (trust), nunca transferido. Sendo o poder delegado e o dever de auto-preservação intransponível, qualquer transgressão ao encargo confiado é uma ameaça à propriedade, que legitima o rompimento do contrato por parte da sociedade, sem que - isto é importante – esteja em curso uma revolução ou golpe. A sociedade retoma o poder soberano com base na razão, sem “apelar para Deus como juiz”.

No Capítulo XIX Locke escreve que o Executivo “age também contra o encargo a ele confiado quando emprega força, o tesouro ou os cargos da sociedade para corromper os representantes e conquistá-los para seus propósitos”, deixando claro que não houve governo na história do Brasil que merecesse trust.

Lula reiterou sua legitimidade com as eleições, mas uma prova material de qualquer transgressão nos próximos quatro anos pode incitar a oposição a questioná-la. Em Dias de Platão em Caracas já discutimos os efeitos atrozes de uma aventura de 3º turno, mas pretendo retomar o tema no próximo post.

domingo, outubro 29, 2006

Três fundamentos da legitimidade

Existem em princípio três fundamentos da legitimidade, ou três formas de dominação política. A dominação carismática, exercida pelo demagogo, isenta de respaldo racional, com base na fé e na mitificação. A dominação legalista, fundada em regras estabelecidas a partir de um estatuto legal e de uma competência positiva, conforme vivemos no Estado contemporâneo. E a dominação tradicionalista, dos patriarcas, monarcas e senhores de terras, baseada nos hábitos, costumes e na autoridade da herança. Isto é Max Weber (Alemanha, 1864-1920), A Política como Vocação.

Lula é detentor de um impressionante domínio carismático, que sobrepuja as instituições, estabelecendo-se em uma relação direta com a população. Ele pode reiterar seu domínio político em razão da legalidade, através do pleito eleitoral. Espero que a liderança por tradição esteja fora de seu alcance, mesmo que na América Latina tudo pareça ser possível.

Aparentemente, Lula tem legitimidade com mais de 50% de aprovação do seu governo e, sobretudo, com a maioria dos votos. John Locke e eu questionaremos este raciocínio no próximo post, com uma “estranha doutrina”.

"Evidently not..."


Monty Python

domingo, outubro 22, 2006

Consensos dissimulados

A necessidade da redução dos gastos públicos virou mais um consenso dissimulado. Como quando terminamos satisfeitos um longo debate com a solução universal de todos os problemas: educação. Se um vagabundo rouba uma senhora, às duas da tarde, no lugar mais movimentado do Centro pensamos, magnânimos, que o coitado não teve oportunidade de estudar.

Reduzir as despesas correntes, com ganho de eficiência na gestão pública, é um fundamento tão importante hoje quanto o controle da inflação foi um dia. No entanto, para qualquer resultado das eleições, o cenário para a construção deste pilar está passando de "improvável" para "impossível".

sexta-feira, outubro 13, 2006

Sun Tzu x Maquiavel

Kim Jong-Il pratica a milenar Arte da Guerra de Sun Tzu. Esperou as reações às aventuras de líderes estudantis iranianos e latino-americanos e escolheu um momento preciso para fazer seu marketing. Um pouco de endomarketing, para a auto-estima das tropas do "Comandante Supremo da Luta contra o Imperialismo", um pouco de propaganda, para os clientes terroristas de sua indústria bélica, e uma tentativa de pedir algo ao mundo civilizado, talvez um financiamento em dólares, em troca de mais um período de sinistro silêncio oriental. Movimentos calculados para vencer sem combate.

Além do Taoísmo de Sun Tzu, a manobra nos faz entender o Zen-budismo de koans do tipo "quanto mais forte, mais fraco". No caso da Coréia do Norte, precisa parecer forte, porque é fraca. No caso dos EUA, feito Alexandre, o Grande, estão fracos porque suas forças estão espalhadas em diversas frentes de batalha pelo mundo.

Ainda assim, do lado de cá, alguém vai pensar seriamente na resposta militar. Passemos então a simular como pensaria quem tem o poder de decidir. Se não for por motivos humanistas ou cristãos, que seja priorizada a diplomacia por motivos estratégicos. Para Maquiavel, são condições que fazem valer uma conquista pelas armas:

1. Os homens gostam de mudar de senhor, se com isso puderem melhorar;
2. Tornar aliados os vizinhos mais fracos e defendê-los sem lhes aumentar o poder;
3. É sempre necessário o apoio dos habitantes , em alguma medida, para entrar em uma província;
4. Deve-se exterminar a família do antigo Príncipe, para que se conserve a conquista;
5. É preciso manter leis e impostos;
6. Residir no local conquistado;
6. Fundar colônias é melhor do que manter tropas.

Analise cada ponto você mesmo. E comente, é claro. Faz pensar sobre o Iraque, não é? Mas de volta à Coréia do Norte, mesmo que os itens 1 e 2 advoguem a favor, todos os demais vão contra uma eventual invasão.

Parece que se consolida uma vitória diplomática para George W. Bush. Ele se fortalece ao liderar uma importante reação, ao lado do Japão e da China, através das Nações Unidas, revertendo a ameaça em uma oportunidade de melhorar um pouco sua imagem diante da opinião pública internacional.

sábado, outubro 07, 2006

Jeitinho brasileiro

O recente relatório Bribe Payers Index (BPI) 2006, da Transparency International, conclui que empresas multinacionais recorrem mais ao suborno quando atuam em países pobres (Low Income Countries and Africa), e que as mesmas empresas apresentam conduta exemplar quando estão em países da OCDE.

Uma análise juvenil, típica de cursinho pré-vestibular, diria que se trata do domínio imperialista do grande capital predador sobre os países periféricos explorados. Mas, se as empresas são honestas em países ricos, e corruptas em países pobres, parece claro que o problema está nos países pobres, e não nas empresas. E muito menos nos países ricos. Conhecemos as diferenças dos sistemas judiciários, das polícias e dos graus de impunidade entre os dois grupos de países. Para não falar da cultura, porque acarretaria uma longa discussão antropológica.

O "neoliberalismo", a "globalização" e o "capitalismo imperialista" sempre levam a culpa por nossa incompetência no estabelecimento do Estado de Direito. O "jeitinho brasileiro" é o nosso verdadeiro predador. E é canibal.

segunda-feira, outubro 02, 2006

O céu não é azul porque é legal andar de bicicleta

Somos obrigados a ouvir diversas vezes, diariamente, a mesma opinião de nosso colunista político preferido até a hora do almoço. Raramente aparece um raciocínio novo, ainda que breve, para animar as mesas redondas de nossa convivência. O debate político está cada vez mais difícil no Brasil. Muito por ignorância, um pouco por má fé. Aos interlocutores está faltando, de onde posso ver, um tanto de lógica e matemática. Não há distinção entre números absolutos e relativos, por exemplo. Comemoram-se milhões de novos empregos, diante de uma taxa de desemprego inalterada. Não há rigor na argumentação, apenas uma recalcitrante repetição de sofismas:
- Este Governo é ruim.
- Não, aquele Governo foi péssimo.
É como dizer que o céu não é azul porque é legal andar de bicicleta. Mesmo que o segundo argumento esteja certo, ele não refuta o primeiro.
E existe uma enorme confusão a respeito de relações de causa e efeito: "Nunca foram desmantelados tantos esquemas de corrupção", dizem. Muitos crimes aparecem somente se: aumentam os crimes; ou a polícia é excelente. Não temos elementos para acreditar na segunda hipótese.

Por que tanto compromisso com a coerência? Orgulho? Quando estamos errados, mudamos. Este é o compromisso com a verdade.